sábado, 28 de agosto de 2010

Entrevitas



Hermes Rodrigues Nery: A Sra. publicou O Quinze com apenas 20 anos de idade, cuja tendência social e o estilo neonaturalista abriu uma nova fase na ficção brasileira com um modo novo de retratar os problemas do homem e da terra do Nordeste. Como foi aquela experiência e como eram aqueles anos?
Rachel de Queiroz:
Eu escrevi O Quinze entre 18 e 19 anos e publiquei aos 20. Eu faço questão dessa história da idade porque acho o livro muito maduro. Aliás, quando ele saiu, não tinha feito 20. Eu fiz 20 em novembro e o livro saiu em agosto. Primeiro, que quando escrevi o livro, não tinha idéia nenhuma de fazer algum tratado de Sociologia, nem de dar o primeiro pontapé na literatura nordestina, nada dessas ambições. Eu nasci numa casa de intelectuais. Meus pais eram intelectuais. Era uma casa de livros, então escrever era uma atividade natural. Com 16 anos comecei a fazer jornalismo profissional. Com essa idade já estava profissionalizada, tomando conta das páginas literárias dos jornais de Fortaleza, escrevendo semanalmente uma crônica.
H.R.N: A Sra. já havia visto uma seca antes?
R.Q:
Curiosamente nunca tinha visto uma seca, porque a seca de 15, que se retrata no livro, tinha quatro anos de idade. Já a seca de 19, nós estávamos morando no Pará. Mas o cenário do sertão, tão parecido com os tempos de seca, a tradição moral lá é tão grande, a tradição da seca, as conversas aqui e ali sobre a seca... tudo aquilo me veio com toda a naturalidade, que com este tema escrevi o meu primeiro romance. A primeira grande seca a que assisti foi em 1932. Agora, quanto ao tipo de literatura que eu fazia... na Semana de Arte Moderna tinha 11 anos, mas aos 14 e aos 15 ainda haviam as repercussões, quando comecei a me interessar mais diretamente por literatura. E o que havia de literatura de seca no Nordeste era uma literatura muito carregada do naturalismo do final do século, muito pesada, com muito defunto e muito urubu, muita coisa assim, com uma visão meio sangrenta, sanguinária, digamos. Já eu sempre fui uma pessoa muito moderada no que escrevo, é fácil de ver, não gosto muito das notas sensacionalistas... procurei fazer um tipo de livro que fosse realmente só um testemunho, quase que só um depoimento.
H.T.N: Qual o sentido da literatura na sua vida?
R.Q:
Eu não tenho paixão pela literatura. Eu não acho a literatura essencial na minha vida. Nunca pus a literatura à frente dos outros problemas da minha vida. A literatura, para mim, é vocação e profissão. É o que sei fazer, o que tenho mais jeito para fazer e disso vivo. Não é mais que isso. Eu não sublimo a literatura no meu ideal de vida. Eu passaria muito bem sem fazer literatura. Eu gosto da vida, gosto das pessoas, gosto do pensamento dessas pessoas. Sou apaixonada pelo ser humano.
H.T.N: Em que sentido a Sra. foi sentindo os reflexos da mudança dos anos 20/30?
R.Q:
Nos anos 20, confesso que era muito novinha, tendo vivido sob a tutela paterna. Comecei a trabalhar em 27, e lá em casa meus pais sempre me deram bastante liberdade. Eles eram meus companheiros, quer dizer, nós tínhamos um entrosamento muito bom na minha família. Eu tinha 3 irmãos homens, aliás quatro, porque tinha um que era o meu irmão adotivo. Sempre vivi muito bem entrosada, de que a vida familiar era muito fechada em torno de mim. Eles me ampararam, me ajudaram e me deram a liberdade que carecia. Eu comecei a viajar cedo. Quando ganhei o prêmio Graça Aranha, vim sozinha aqui pro Rio. Eu tinha 20 anos, e vim receber o prêmio. Eu sempre me atribuí o direito de ser livre. Naturalmente que nos meus livros todos aparece este drama da liberação da mulher, porque realmente a mulher vem lutando. Eu nunca fui feminista. Acho que Deus fez o homem e a mulher para serem um complemento um do outro, na união e no bem. Eu acho que homem e a mulher são companheiros e sócios. Se o papel de mulher escrava realmente me repele, mas também o papel de mulher mandona, feminista, inimiga do homem, me repele também. De forma que fui acompanhando, com a espécie de uma posição privilegiada, porque tinha a cobertura da minha família e também dos grupos com quem me entendia.
H.T.N: Que grupos eram esses?
R.Q:
Eu comecei a ficar interessada em política social já em 28/29. Eu comecei a me interessar pelo que restava do Bloco Operário Camponês em Fortaleza. Eu comecei a tomar parte dos grupos de esquerda que estavam se congregando para formar o primeiro núcleo do Partido Comunista. Quando vim para cá, no começo de 31, já me entrosei com o pessoal do Partido, e foi o meu período de militância comunista. Foi de 31/32 a começo de 33. Foi aí que briguei com o Partido. Entrei em choque com eles, e então me aproximei de Livio Xavier e daquele grupo deles de São Paulo. Fui morar em São Paulo, e lá fiquei com os trotskistas, onde fiquei com Aristides Lobo, Plíneo Melo, Mário Pedrosa, Lívio Xavier, enfim, com a elite intelectual dos esquerdistas, de lá, e fui bem recebida por eles, muito carinhosamente. A província funciona muito nas grandes cidades e se defende. Tem os seus núcleos. O Lívio era cearense, o Mário Pedrosa era paraibano, Aristides era mineiro, de forma que São Paulo é muito acolhedora. Ao contrário do que se diz, tenho uma gratidão muito grande por São Paulo. Eu cheguei a São Paulo, no ano seguinte da revolução de 32. São Paulo estava ainda lambendo as feridas da derrota, do esmagamento, que o Getúlio impôs. E iam tropas nordestinas que Getúlio malignamente pôs para esmagar São Paulo, para criar uma odiosidade entre as províncias, e, no entanto, fui recebida com a maior generosidade e carinho. Estes dois anos que passei em São Paulo, no começo da minha vida, foram marcados por um período muito bom, do ponto de vista de amizades, de começo de carreira, de começo profissional, inclusive fui professora lá. Eu ainda não tinha posição jornalística que me assegurasse na manutenção. Eu fui professora particular lá em São Paulo, me filiei ao Sindicato de professores de ensino livre, que era controlado naquele tempo pelos trotskistas.
H.T.N: E a Sra. se desencantou dessa militância partidária?
R.Q:
Sim, a do Partido Comunista, sim, a dos trotskistas, nunca houve uma militância regular. No começo, nós éramos uma fração do Partido Comunista, uma fração rebelde, expulsa, traidora, não sei o quê. Então, não tínhamos uma militância organizada, regular, com células, reuniões etc. Depois, fui para o norte em 34 e fiquei lá até 39. Vinha ao Rio, ocasionalmente, mas fiquei lá até 39, e lá, realmente, os trotskistas não tinham a menor expressão como política... a gente se aliava... os trotskistas, os poucos se aliavam, em geral, aos socialistas. Em 34, por exemplo, recebi ordem do pessoal de São Paulo para aceitar uma candidatura para deputado estadual pelo Ceará, dentro do Partido Socialista, mas, parece que nós ganhamos a eleição, mas, aquele era o temop das fraudes, o tempo delirante das fraudes...
H.T.N: Essa questão de organização partidária me fez pensar em certas estruturas político-partidárias dos dias de hoje...
R.Q:
O Partido Comunista sempre foi o modelo de quase todos esses partidos de esquerda daqui, e o modelo das comunidades eclesiais de base são as células do Partido Comunista. Quando me interessei pelo Partido, aqui no Rio, ele já funcionava desde 22, e me filiei e recebi credenciais daqui para nós organizarmos o Partido em Fortaleza sobre os escombros do que tinha sido o Bloco Operário Camponês, que era um dos ramos do Partido, um dos braços do Partido, que tinha sido destruído pela repressão policial.
H.T.N: Como a Sra. vê a esquerda de hoje e a vitória do PT nestas eleições municipais?
R.Q:
Eu não tenho me aproximado do PT. Não tenho um convívio com eles, mas, realmente, é um dos partidos de esquerda que tem uma organização, um ideário, e tem, principalmente, um caudilho, um chefe, que é o Lula. Os outros estão fragmentados em mil pequenos partidos. Estão fragmentados em várias tendências, e o Partidão foi o que mais sofreu mutilações com esses rachas, com a repressão tão violenta como houve, causou essas exacerbações, essas lutas...
H.T.N: E essas correntes ideológicas conseguem ou conseguirão se encontrar?
R.Q:
Eu tenho a impressão que não. Porque estão cada vez pior. Você acha que o partido do Lula é o mesmo do Fernando Henrique. Você acha que o Covas está na mesma posição que o Arraes. Você acha que todos... em todos você vê o espectro da esquerda... que vem do Brizola que não é esquerdista coisíssima nenhuma. O Brizola é a revivescência do caudilho do sul-americano. No fim, ele é neto do Lopes, do Paraguai, é neto do Rosas, é irmão do Somoza, é primo do Gomes, da Venezuela, é sobrinho do Stroessner, é de uma família toda que... e, principalmente, ele tenta ser o herdeiro de Getúlio Vargas. Quer dizer, uma figura completamente arcaica. É, aliás, o que continua a fazer com o novo prefeito. O pessoal tinha feito toda uma programação para o prefeito eleito, né? Toda a escolha do secretariado... e ele chegou, riscou uns, vetou outros, trouxe outros pelas mãos, reformulou tudo o que o prefeito tinha organizado. Imagine você o que ele será no plano federal. Eu sou contra toda e qualquer posição sectária. O sectarismo é um estigma. A questão de ideologias são para almas estreitas. Você pode ter comunicação permanente se tiver idéias abertas e aceitar todos os caminhos. Nós estamos falando aqui do Brizola. O problema é o seguinte: você não pode ser amigo do Brizola. Você tem que ser contra. Ele não tolera você ser contra. Você tem de ter a ideologia dele, pensar o que ele pensa, senão não dá. O Lula, por exemplo, não te engole, de qualquer maneira. Ou você é lulista ou você não é. E foi essa intolerância, esse sectarismo que afastou todos os intelectuais do partido.
H.T.N: O seu romance O Caminho de Pedras apareceu em 1937. Como foi aquele período?
R.Q:
O livro apareceu um pouco antes do Estado Novo. O Caminho de Pedras foi do começo de 37, e o Estado Novo aconteceu no final do ano. Coincide com o período que antecede aquele estado de guerra, o estado de sítio, aquela coisa que o País viveu. Quanto à elaboração da obra, não sofreu, digamos assim, influência direta daqueles acontecimentos, dentro do Estado Novo, porque, como lhe disse, ela apareceu antes. A coincidência é de datas, mas é claro que, depois de publicado o livro, sofremos todo o arbítrio daquele período, tanto que o livro foi discriminado, inicialmente tive que ser interrogada sobre o livro etc.
H.T.N: Como aconteceu o Estado Novo?
R.Q:
O Estado Novo caiu em cima da gente como uma pedrada na cabeça. O Getúlio teve o cuidado de mandar o Negrão de Lima em viagem por todos os estados do Brasil, e, em cada capital, ele parava, falava com o governador, sondava o governador... isto em outubro de 37. Os governadores quase todos aderiram, com exceção do Juracy Magalhães (e um outro que não me lembro agora). Foram dois os governadores que não aderiram. Então, ele mandou pegar tudo quanto é intelectual de esquerda, trotskistas, stalinistas, anarquistas, todo mundo ficou preso até janeiro, incomunicável. Me prenderam lá no Quartel de Bombeiros. Fiquei presa de outubro de 37 a janeiro de 38. Ele conseguiu fazer com que a imprensa ficasse praticamente em silêncio, porque todo mundo que tinha pena e escrevia, e era de esquerda, entrou em cana.
H.T.N: O Estado Novo foi pior que a ditadura militar de 64?
R.Q:
Foi pior, muito pior. Porque ele tinha processos fascistas já codificados. Já tinha o modelo alemão, polaco, italiano, de forma que ele se associou a esses governos criminosos, terríveis, monstruosos. Tudo o que se diga é pouco. Basta dizer que nestes últimos 20 e tantos anos de ditadura militar não se cometeu um caso como o de Olga Prestes. Não se entregou a mulher de um cidadão brasileiro, grávida de uma criança brasileira, para ser sacrificada nos fornos crematórios, de cuja existência já se tinha notícia.Sofremos uma opressão em circunstâncias muito piores. O Brasil era muito menor, isolado do mundo, agrário, uma província ainda. Nossos meios de comunicação, a mídia eletrônica, não havia nada disto. O que havia era a censura. A censura era total. A Igreja estava silenciosa, não se manifestou. Dizem que o cardeal Leme escondia perseguidos políticos, mas isto supõe-se. Não foi como a posição mais aberta que a Igreja tomou contra a ditadura agora. O mundo inteiro ficou sabendo o que se estava passando no Brasil durante o Estado Novo, sofreu-se muito, as perseguições, as torturas, as mortes, o silêncio.
H.T.N: O número de efervescência intelectual durante o Estado Novo foi muito maior do que da última ditadura?
R.Q:
O que acontece é que já vínhamos de uma geração de intelectuais que foi a geração de 30. Todos nós estávamos livres e de repente o Getúlio não nos podia calar assim, tínhamos que resistir. Na verdade, você vê, passou o Estado Novo, e saiu o Graciliano, saiu o Jorge, saiu todo mundo, o José Lins, arrebentou todo mundo, e, depois dessa última ditadura, esperava-se uma nova florescência de talentos, as obras-primas que estavam engavetadas não apareceram, não apareceu nada. Realmente não houve uma grande efervescência da produção intelectual, e não só não houve essa emergência de talento literário que se esperava (salvo um outro nome que tem sido devidamente festejado) mas não houve aquele algo novo. A gente já existia antes do Estado Novo e continuou produzindo depois, a gente já estava funcionando. Mas em todo o caso, não acho que um e outro não são responsáveis nem pela efervescência do pós-ditadura militar. Eu acho que essa falta de produção é aquilo que já vínhamos discutindo antes: a questão do ciclo. Havia um ciclo em funcionamento quando veio o Estado Novo. Houve um ciclo literário. Já na última ditadura, tivemos uma efervescência em outros setores: no teatro, no cinema, nas artes plásticas, talvez, e na música. Você pega, por exemplo, os governos da República Velha (a Semana de Arte Moderna acontece em plena República Velha), você vê: o coronelismo não era militar. Quem disse muito bem sobre a República Velha foi o Gilberto Amado. Ele disse que a representação política era falsificada, mas era muito melhor, muito mais selecionada do que hoje.
H.T.N: Como assim?
R.Q:
Você sabe que quanto mais se abrem as portas mais se baixa o nível. Você vê, por exemplo, a questão do eleitor analfabeto. O eleitor analfabeto está provado que não vota, absolutamente. Ou o voto é anulado porque ele cometeu algum erro, ou ele nem sabe em quem está votando. Eu considero que a liberdade é o maior direito de todos nós. Sou pela liberdade. Pelas concessões democráticas, mas não pelas demagógicas. Eu acho que o voto do analfabeto foi um dos nossos maiores erros políticos, um instrumento de demagogia, de rebaixamento político, o voto do analfabeto. A primeira coisa que tinha de se fazer era alfabetizar. O analfabetismo não é Aids, não é uma doença incurável. O analfabetismo é curável. O único remédio para o analfabetismo é acabar com ele. É a única solução. Eu acho que uma das piores aquisições dessa nossa nova democracia foi o voto do analfabeto.,

Fonte: http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/rachel2.htm

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